16 de noviembre – Día de San Cristóbal
Recentemente viajei para Cuba, a trabalho. Em Havana, tive a oportunidade de visitar o “Templete”, local icônico mencionado em um conto que traduzi em 2010 e que me rendeu um prêmio chamado “Prêmio Novos Tradutores do Brasil”. Para quem tiver interesse em ler, o conto chama-se originalmente “Darle vueltas a una ceiba”, do escritor cubano Guillermo Cabrera Infante ou, “Dar voltas a uma paineira”, na minha versão. 😊 De forma lúdica, o conto aborda a tradição do Dia de São Cristóvão, santo patrono de Havana. Fazendo referência a esta comemoração, hoje público, pela primeira vez, a minha tradução do conto. Espero que gostem! Boa leitura.
Dar
voltas a uma paineira
Guillermo Cabrera Infante
Não, não sei que raio deu
nesta mulher. Está aí dando voltas como cavalinho de carrossel ao redor dessa
árvore sem dizer nada, simplesmente dando voltas e mais voltas. Já está me
cansando. Sempre com suas encenações, suas tolices e suas bisbilhotices. Acreditando
nesse lixo todo. Ah, não. Comigo não. Já lhe disse que não caio nessa. Vejam
como estão: parecem idiotas. Não vou me meter nisso. Disse-lhe bem claro esta
manhã, quando se levantou com essa asneira na cabeça.
A culpa não é dela, é dessa
fulana que se mudou recentemente para o cortiço e veio parar no quarto ao lado.
Ela passa todo o santo dia enfiada em nossa casa e dizendo minha irmã faça
isso, minha irmã faça aquilo, minha irmã aquilo também e mais o outro. Quero
ver se no fim do mês, quando vierem lhe cobrar o aluguel, vai querer que o
paguemos em compensação pelos conselhos que dá à minha mulher todo santo dia.
Esta aporrinhação de agora é coisa dela. Com certeza, é sim. Aposto cem pesos
contra uma ponta de cigarro que foi ela quem enfiou isso na cabeça da
abestalhada da minha mulher, que acredita em tudo.
Ali está me chamando com
gestos. Mas pode lhe cair o braço fazendo macaquices que eu não vou lá. Fico
aqui sentado onde estou e fim de papo. Se não fosse porque não pode falar já
estaria me chamando aos berros. Agora tem que se conformar em gesticular a manhã
toda ou até que o sol lhe asse aquela mãozinha e essa lhe caia enegrecida ao
chão. Tão festeira. Tudo para ela é um alvoroço. Esta manhã me pregou um
tremendo susto porque me acordou fazendo caretas e revirando os olhos e dizendo
jucujucu como se tivesse um gole de água na boca e não pudesse falar. Eu ainda
estava meio dormido e o que penso: aconteceu-lhe alguma coisa ruim, e me
levanto num pulo só, e começo a sacudi-la pelos ombros. Endoideceu, disse a mim
mesmo. Porque o seu velho está na Mazorra há mais ou menos dez anos e uma irmã
sua botou fogo em si mesma, e tem outra que nasceu assim, toda manqueja e tudo
isso, e eu acho que ela também passou para o lado dos bobos. Depois de
conseguir escapulir ela vai até a mesa e pega um papelzinho que está ali preparadinho
e tudo e me mostra. Toba, diz o recadinho, lembre-se que oje é o dia. O cortiço
com dois esses dezeja Felisidade. Perdoe que não fale com você no dia de teu
santo. Veste a camisa branca de botão, as calças brancas e os sapatos bicolores
que vamos ao templete. Clodo te ama. Bom, de modo que essa fulana lhe enfiou na
cabeça a ideia de ir ao Templete e dar voltas à paineira que há ali. Agora, não
há quem me meta em nada disso. Não senhor. De jeito nenhum, com seu mau agouro
e tudo, como dizia Padrinho. Eu ali NÃO entro. Aí está me chamando tão
apressadinha como nesta manhã, quando ainda cedo já me acordava. Felicidades te
deseja o cortiço com dois esses. As coisas que enfiam na cabeça desta mulher.
Bom, vejamos, já que era o dia do meu santo bem podia me deixar dormir pela
manhã, que já nem aos domingos se pode descansar em paz sem que venha um
flagelo desses pra azucrinar o dia da gente.
Agora, o que eu fiz foi tomar
meu pingado muito tranquilo, muito confortavelmente, o rádio ligado, ouvindo
como o velho dom Carlos, o Professor Gardel, elevava um tango às alturas pela
manhã. Depois ouvi meu par de boas milongas e fumei dois cigarrinhos seguidos.
E ela pra lá e pra cá escrevendo papeizinhos e mais papeizinhos. Parecia uma
recenseadora do censo que tivesse caído na vila. Toba, se apresse por favor. Já
nem os assinava. Nos últimos eu já estava a ponto de explodir. Por pouquinho a
faço falar! Cristóbal pelos restos de tua mãe Tomasa apresse-se. Acontece que
tive pena dela, que apesar de tudo é uma preta muito companheira e muito
trabalhadeira e peguei e me levantei. Agora, isso sim, levantei-me com toda
minha santa calma e me vesti bem (bem devagarzinho) sem pressa. Depois desci as
escadas muito cheio de mim e acendi outro cigarrinho na rua e fui até a esquina
pra tomar um cafezinho de cinquenta centavos. Cruz credo! É uma calamidade que
aos domingos não abram o botequim da rua Inquisidor e a gente tenha que
caminhar até o Cais da Luz pra tomar um bom café. Mijo de égua foi o que tomei.
Tive que enxaguar a boca com água na frente do sujeito que vende o café e tudo.
Depois, passinho por passinho, viemos para o Templete.
Pelo caminho cada vez que
Clodo se encontrava com um conhecido ou com uma amiga ou com um parente (porque
esta mulher tem mais família que os Valdés) tinha que vê-la, cumprimentando com
a cabeça, assim, baixando-a, como se fosse uma duquesa russa ou coisa parecida,
sem dizer nunca nadinha. Eu preferia que tivéssemos ido de ônibus! Mas ela sabe
tudo e me levou caminhando pela rua de São Inácio de modo que não tivesse que
se encontrar com essas amigas das ruas Inquisidor e Lamparilla, que são quase
umas seis mil negrinhas e todas são costureiras e todinhas, todinhas usam
óculos e sempre estão inspecionando todos os que passam com seus vinte e quatro
mil olhos.
Quando chegamos à Praça de
Armas aquilo já estava cheio de gente e até a prefeitura estava aberta e a
banda municipal por ali com Gonzalo Roy e tudo o mais realizando o dia de São
Cristóvão, de maneira que tivemos que entrar no meio da multidão e grudar na
grade do Templete. E até aí chegou meu amor.
Neguei-me a todo custo a
entrar e então ela começou a me arrastar por um braço e depois por uma manga,
até que finalmente ficou fazendo assim com a mão e me afastei dali como
cachorro com o rabo entre as pernas e me perdi atrás da tuba e da batuta de Gonzalo
Roy e do ruído tremendo que fazia a banda enquanto tocavam o Hino invasor.
Depois a vi, quando se juntou ao redor da paineira com todo aquele povo a quem
aquela fulana que vive no quarto ao lado deve ter enfiado na cabeça essa ideia
de que quando se dá a volta ao redor da árvore perto de um milhão de vezes sem
falar nem meia palavra, nem um suspiro e se vai pedindo uma coisa, até que
termine a missa, a árvore ou o Templo ou o padre que depois asperge com seus
sermões o tronco da árvore ou Gonzalo Roy ou Deus, te concedem. E assim o
senhor pode ver as mulheres e alguns homens também, não duvide, de tudo há no
mundo, dando a volta à árvore, caladões mas pedindo, pedindo, pedindo.
Aí está ela, Clodo Pérez,
minha mulher, tão cabeça-dura, ainda dando a volta ao redor do pau. Porque isso
já não é uma paineira nem metade de uma de tão seca que está. Por que a árvore
mesma não se faz um milagre e faz brotar folhas de novo? Clodo vai dizer que é
porque a paineira não pode dar a volta em torno de si mesma, com certeza, e
pedindo seu milagrezinho. Todo o mundo já foi para casa e os da orquestra se
recolheram e Gonzalo Roy a esta hora deve estar dormindo sua sesta porque
passou toda a santa manhã dirigindo a banda como se estivesse morto de sono, de
modo que deve estar sonhando que vem uma mulata gostosona e lhe diz Cecilia
Valdés é meu nome. E eu estou aqui fumando meu cigarrinho número noventa e nove
e olhando como minha mulher engole essa merda milagrosa. Fumando espero por
Clodomira Pérez. Ali está ela me chamando outra vez e dizendo como o
telegrafista do Morro, por gestos, que venha eu também ao carrossel da
paineira. A mim.
Fumar é um prazer, sensual,
ideal, ritual.
Mas pensando melhor vou. Eu
não acredito em nada disso, mas vou e vou começar a dar voltas ao vegetal e
tudo. Ela vai ficar muito contente e vai achar que entrei na dela. A
coitadinha: ela me vendo aqui só sentadinho na sombra, resguardado do sol,
fumando tranqüilo meu cigarro cem. Aposto que acha que eu não abri a boca em
toda a santa manhã, que não disse palavra. Vou matá-la de desilusão? Eu também
vou dar minha volta boba à paineira.
Guillermo Cabrera
Infante (1929-2005)
Tradução: Rosa Maria Severino Ueno
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